Juiz Dredd Megazine Especial: Democracia

If you want a vision of the future, imagine a boot stamping on a human face – forever.

Pisquem os olhos e correm o risco de não dar por ela. Isto, pelo menos, se não tiverem a sorte das nas vossas proximidades haver algum espaço que vos alimente o vício dos comics com as traduções da Mythos importadas para Portugal. Do fumetti não falo porque tenho paciência nula para Julias, Texs e Demians. Fosse Dylan Dog e o caso mudaria de figura.

Deparei com esta Megazine Especial no El Corte Inglès, cuja estranha livraria gerida por pessoas que se nota que percebem pouco de livros é um antro onde se encontram algumas  curiosidades. A loja faz parte da lista de locais que vendem publicações da Mythos, mas confesso que só lá encontro a Megazine. Ao lado da Wired e longe de quaisquer outras revistas de banda desenhada. Como disse, é uma livraria estranha.

O fascínio autoritarista sempre foi uma das grandes linhas-guia do Old Stoney Face, pisando uma linha muito ténue entre ironia corrosiva e apologia do iliberalismo. Uma vertente que acaba muitas vezes diluída num Dredd enquanto personagem de aventuras futuristas na estranha mistura de utopia distópica que é o mundo das Mega Cities, cujos habitantes são, em grande maioria, uma caricatura histriónica do mais ridículo que a humanidade oferece. Esta indecisão entre utopia e distopia futurista foi muito bem explorada na mini-série Mega City 2 da IDW por Douglas Wolk, com um traço fantástico do ilustrador Ulises Farinas.

Sublinhe-se que tudo em Dredd faz a apologia da superioridade da autoridade dura sobre outras formas de organização social. O aspecto duro e recto, o constante apelar aos valores do dever sacrificial e à infalibilidade da lei, a apologia barroca do sed lex dura lex, a visceralidade sumária da sua aplicação, a visão dos cidadãos como mentecaptos incapazes ou potenciais criminosos. Devo dizer que sempre achei este aspecto preocupante. Sem querer entrar em discussões muito relativas de valores e influências, não é de todo negligenciável o possível efeito da exposição de leitores jovens às empolgantes aventuras de um personagem cujos valores são a negação da sociedade democrática liberal e progressista, mesmo sabendo que o objectivo é ironizar e criticar e não o propagandear. A ironia nem sempre é perceptível e o que lemos influencia a nossa forma de pensar. Se bem que, como já referi, são aspectos habitualmente diluídos na exploração de Dredd como personagem de aventuras de ficção científica.

Essa diluição anda arredada nesta série de histórias que lida com a possibilidade de democracia na Megacidade. Esta edição especial da Megazine publica três arcos narrativos de Dredd, originalmente publicados na 2000 AD (onde mais…?) que no seu todo abordam a ideia da democracia em Mega City 1. Aqui, a ironia é tão fina que quase chega a ser irreconhecível. Isto, claro, se assumirmos que o exacerbar autoritarista de Dredd é caricatura ao establishment clássico. Confesso que sempre o vi assim. Dredd sempre foi a redução ao absurdo do “If you want a vision of the future, imagine a boot stamping on a human face – forever” de George Orwell no livro 1984.

Os limites são esticados, com John Wagner e Alan Grant a socorrerem-se de todos os estratagemas para demolir a possibilidade de uma democracia no mundo ficcional dos juízes. Isso é particularmente notório nas primeiras histórias, vindas do final dos anos 80, da escuridão profunda de uma era Thatcher de que ainda hoje colhemos  os amargos frutos. O impulso democrático é impossibilitado pelo jogo sujo dos defensores da lei que criam uma intensa campanha oculta de propaganda e acção directa para desacreditar os seus defensores.

A terceira história, mais contemporânea, mostra um Dredd indeciso quanto à legitimidade da instituição que representa ser dona e senhora da cidade, e a combater um grupo de juízes reaccionários que querem impedir a todo o custo qualquer ideia de mudança de regime. Essa legitimidade acaba reconhecida pela população num plebiscito livre, que derrota democraticamente a ideia de democracia. Aqui, o nível de ironia é elevado, bem como o comentário sobre o alheamento político das populações, algo visível e em crescimento nas democracias liberais sempre que se comparam taxas de abstenção com os resultados de votações. Novamente, as populações são retratadas como desinteressadas, preferindo a normalidade estabelecida mesmo com restrições duras à sua liberdade. Liberdade essa que parece não lhes interessar, entretidos como estão pela televisão que lhes adormece os pensamentos. Suspeito que esta diluição dos absolutos tenha sido possível graças ao arranque de Garth Ennis aos comandos da personagem, que nos traz elementos daquilo que se veio a tornar no seu cunho narrativo cheio de humor negro.

Para fãs e conhecedores da mitografia de Dredd, esta edição da Mythos é interessante por conseguir reunir um conjunto de histórias clássicas, dos anos 80 e 90, sob um tema específico. Dredd é essencialmente episódico, e este tipo de edições permite-nos dar um passo atrás e perceber os grandes temas que atravessam o fluxo de aventuras do personagem.

[box title=”Ficha técnica” style=”noise” box_color=”#f2ecdd” title_color=”#353535″]Juiz Dredd Megazine Especial: Democracia

Autores: Alan Grant, John Wagner, Garth Ennis, et al.
Editora: Mythos
Páginas: 86, revista
PVP: 4 €[/box]

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